Ressaca Literária: “Com O Mar Por Meio: Uma amizade em cartas”

“Com O Mar Por Meio” é um livro publicado pela Companhia das Letras em 2017 que compreende a coleção da correspondência trocada por José Saramago e Jorge Amado entre os anos 1992 e 1998. Depois de as suas vidas quase se cruzarem por duas vezes, foi em 1991 que os autores se tornaram amigos.

“No ano seguinte (1991), fazendo frente à poderosa candidatura de Marguerite Duras, proposta e defendida por Pascal Quignard, consegui, com o apoio tranquilo mas teimoso de Jorge Amado, até a rendição unânime dos restantes membros do júri, que o prémio fosse para José Cardoso Pires. A amizade com Jorge Amado começou aí, pelejando, ombro com ombro, para que um escritor de língua portuguesa fosse o destinatário do reconhecimento internacional que o Prémio Literário da União Latina então significava.”

Começando por José e Jorge, a ternura rapidamente se estendeu às respetivas esposas, Pilar e Zélia, e famílias. Um grande carinho fazia a viagem entre Lanzarote e a Bahia, e nem a distância o cansava ou fazia desvanecer. Estava sempre lá: nos aniversários, festividades, nas boas e más notícias, como, a título de exemplo, quando Jorge Amado sofreu um enfarte:

Querido Jorge, querida Zélia,
A inquietação é muita, mas a esperança é maior. Uma torre como essa não cai assim. Não tardará a recuperação e o regresso da saúde, e se certamente já não poderemos encontrar-mos em Lisboa, no princípio de junho, pronto virão outras ocasiões. Se o espírito serve para alguma coisa nestes casos, asseguramos-te, querido Jorge, que o nosso está a usar de toda a força para te ajudar, em união com teus infinitos amigos e leitores. Para ambos, Zélia, Jorge, todo o nosso carinho. Seguiremos daqui o evoluir do acidente, preocupados, mas confiantes.
Pilar, José

A literatura foi o que os uniu e era, de facto, um ponto fulcral nos seus diálogos – reflexo das suas vidas. A ela se aliavam a política e as demais considerações sobre o quotidiano. Diversos debates se estabeleciam relativamente a prémios e sociedades de escritores, artigos de jornais que consideravam ser do interesse um do outro eram partilhados. Comparavam agendas, tentando perceber quando estas se alinhariam para o próximo encontro.

A defesa da língua portuguesa, da literatura portuguesa, e o desejo de as ver reconhecidas, é uma constante nas conversas dos amigos. Não por se quererem ver reconhecidos (embora cada um defendesse que o outro era um génio literário – ambos estavam corretos), mas por acreditarem que os autores de língua portuguesa tinham a qualidade para tal. Não sendo o mais relevante no livro – essa descrição só pode ser atribuída à bela relação que existia entre estas pessoas e de que nós temos o privilégio de ter um vislumbre – é algo que deixa o leitor a pensar. A literatura portuguesa é, de facto, muito rica e, por vezes, muito subestimada. Apesar de os portugueses serem um povo bastante patriótico e orgulhoso, também está enraizada na cultura portuguesa a ideia de que o que “vem lá de fora” é sempre melhor, mais alto. Algo que nem sempre se verifica, tal como em vários momentos é relatado por Jorge e José.

Em suma, nas páginas várias que compõe “Com O Mar Por Meio”, lê-se, sobretudo, sobre amizade. Genuína, pura, amizade. Aquela que sobrevive às provas geográficas e temporais, nutrida pela admiração mútua e desinteressada. Este é, sem dúvida:

“O livro dos dois amigos, dos dois grandes nomes da língua portuguesa, que se queriam bem, que de tudo conversavam e que marcaram o século XX com os seus talentos.”

“As fotografias chegaram. São documentos preciosos, em particular aquela em que estamos, Jorge e eu, sentados nos degraus exteriores da Fundação: a partir de agora, posso, com prova real, dizer: «Estive lá, e com ele.»”

Se os excertos que foste lendo ao longo do artigo te deixaram curioso, podes ainda encontrar outro no fim, o responsável pelo título do livro.

 

Mariana Varejão de Magalhães

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