Opinião: “Ensaio sobre a cegueira” – os cegos somos nós

José Saramago foi um dos maiores intelectuais de nossos tempos. Premiado com o Nobel de Literatura em 1988, o escritor português, deixou grandes romances como Memorial do convento (1982), O ano da morte de Ricardo Reis (1984) ou Ensaio sobre a cegueira (1995), a sua obra mais conhecida.

Quando tudo começou

O Ensaio sobre a cegueira inicia-se com um homem que fica cego enquanto conduz. O velho, aturdido e desesperado, é ajudado por outro homem, que aproveita o caos e a gritaria à sua volta para lhe roubar o carro. Como é bem sabido, a ocasião faz o ladrão. Desta forma, conhecemos a história do primeiro cego e a do segundo.

A partir desse momento, a “cegueira branca” propaga-se rapidamente e, perante o desconhecimento das causas e da disseminação da enfermidade, o governo decide isolar os doentes num manicómio abandonado. Um dia após o outro, homens, mulheres e crianças são levados a viver as mais diversas situações, onde os aspetos mais primitivos da humanidade se revelam. Despojados das suas posses, riqueza e, inclusivamente, dos seus nomes, os cegos enfrentam a vergonha, a fome, a brutalidade, a violência e a morte.

A cegueira e a pandemia atual

Com este romance, Saramago, oferece-nos um relato nauseabundo cuja atmosfera atemporal é inquietantemente semelhante ao momento que estamos a viver. A pandemia, produzida pelo Covid-19, espalhou-se pelo mundo, e o custo humano, económico e social ainda é incalculável. A falta de conhecimento sobre a doença, a ausência de um tratamento especializado, as mentiras e os boatos que circulam nas redes sociais, contribuem para a proliferação do medo, do egoísmo e do ódio.

Desde o começo da pandemia, quando muitos se lançaram em massa aos supermercados até terminarem com as reservas de álcool, de alguns alimentos básicos e até de papel higiénico, temerosos de que em algum momento pudessem faltar-lhes, a “cegueira” revelou-se, ninguém viu além das suas próprias necessidades, pois somos “cegos que, vendo, não veem”.

Este é um momento muito delicado no qual muitas pessoas perderam a vida e outras tantas estão infetadas; outros perderam empregos e negócios, e não sabemos quando poderemos abraçar os que amamos e que vivem longe. Por isso, saber que muitos se negam a resguarda-se nas suas casas, a usar máscaras de proteção ou a manter a distancia social nas ruas, enche-nos de raiva e indignação; mesmo assim, devemos fazer o correto, mesmo que pareça que mais ninguém o faça, mesmo sem a promessa da recompensa divina ou material. Tal vez, essa seja a lição mais importante que nos deixa Saramago no Ensaio sobre a cegueira.

A doença que leva ao colapso da sociedade no livro, o “mal branco”, é um rasgo da condição humana, é uma miopia moral que nos leva a realizar os atos mais baixos, que nos leva a desumanizar o outro e, por consequência, a nós mesmos. Desta maneira, neste romance, Saramago estripa e escancara o reverso nu e cru da condição humana para nos mostrar do que somos feitos: “metade de indiferença e metade de ruindade”.

Recomendações

Para fechar com “chave de ouro”, recomendo o filme Blindness (2008) de Fernando Meirelles que é uma fiel adaptação do espírito do livro. Se quiseres saber um pouco mais sobre José Saramago, o documentário José y Pilar (2010) de Miguel Gonçalves Mendes é absolutamente encantador e não te vai dececionar.

 

Aida Zimmer

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