Ressaca Literária: As Intermitências da Morte

“No dia seguinte ninguém morreu.”

São as palavras que, mais tarde ou mais cedo, gostaríamos de ter ouvido. Talvez não precisasse de ser ninguém. Porventura teria chegado que alguém específico não tivesse escutado o sopro das suas asas. Mas os milagres teimam em desobedecer à simplicidade dos pedidos formulados. Gostam de nos lembrar de uma das leis universais que regem o quotidiano dos comuns mortais, a cautela com os desejos sussurrados.

“Para pouca vida mais vale nenhuma.”

No dia seguinte ninguém a conheceu. Nem os que não a mereciam, nem os que dela precisavam. Nem os inocentes, nem os condenados. Mas não estar morto não será certamente o mesmo que estar vivo. O mundo teima em existir em espectros e abandonar a existência binária para as máquinas. Os que não estão vivos, mas que não podem estar mortos existirão como? É este o ponto de partida para o exercício absurdista que Saramago pretende pôr em prática.

“Saberemos cada vez menos o que é um ser humano.”

E da praticidade nefasta de tal condição falará o autor melhor do que ninguém. Mas, devolvido o livro à estante, não é isso que resiste no nosso cérebro. Que ressalta pelas paredes do crânio, certamente um menos belo que o da morte. É um livro que inquieta. Que escolhe repousar, ainda indecifrado, nos confins da alma. Uma que estará nos verbetes de uma figura encapuzada, já com os dias contados. Pronta a ser reclamada.

Voltamos a cruzar-nos com a sua gadanha. Por fim compreendemos o que Saramago pretendia. A humanidade está na morte. Porque não devia ser lógico amar algo que está condenado a desaparecer. Cultivar algo que não terá futuro senão naquele que a nossa própria ilusão do tempo compreende. Mesmo cientes do inevitável fim continuamos. É quem somos. É tudo o que queremos ser.

No fim do artigo poderás encontrar a leitura de um pequeno excerto.

Francisco Caetano

 

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