NOS Primavera Sound (dia 10) – Conto de Primavera, Capítulo II

O pé vai ligeiro, quase se adianta ao corpo ainda à procura de direções. É a ânsia que o guia – urge saber se tudo aquilo é real, se finalmente regressaram os mágicos festivais de verão (ou de primavera, que assim seja) após tão solitário interregno. O caminho vai-se traçando e, misticamente, parece repleto de espelhos – é exatamente o mesmo sorriso e a mesma jovialidade (vai-se lá saber como, mas garanto-vos que assim o é) que pauta todos os rostos com que cruzo.

Até que as ânsias todas se acalmam e o cenário se confirma – a já visão da já costumeira multidão recostada na pequena colina verde frente ao palco Super Bock, atenta e jovial, faz parecer que tempo nenhum passou desde a última edição do festival. A ordem está restabelecida. E é assim que começa o (meu) segundo dia do NOS Primavera Sound.

Navego pela multidão até encontrar o meu lugar ao sol e, juntos, embebemos o flamengo de María José Llergo. Natural de Córdoba, a artista demonstra que o seu recente crescimento mantém indelével o discreto compromisso de honrar as suas raízes e, concomitantemente, representar os novos valores da sua geração – Niña De Las Dunas (2018), que marca a sua estreia, ecoa no seu maior esplêndor. O flamengo do passado e do futuro, da tradição e da modernidade metamorfoseia-se num canto terno (porém firme e assertivo) do seu (primeiro) albúm Sanación (2020), jornada de “cura” e progresso pessoal.

María José Llergo – NOS Primavera Sound 2022 © Hugo Lima

Altera-se o palco, conserva-se o montado verde sob o terno sol e os rostos expectantes pelas venturas sonoras que se avizinham. É neste cenário, no palco NOS, que nos embalam Slowdive. O longo reportório da banda britânica permite que sejamos presenteados com temas que vêm desde o seu primeiro albúm, Just For A Day (1991), até ao mais recente projeto, Slowdive (2017). Estranhamente, a sua sonoridade produz em nós os mesmos efeitos que o sol que nos aquece; enternece-nos.

NOS Primavera Sound 2022 – © Hugo Lima

Faz-se já tarde e o sol revela aos poucos as velhas teimas em esconder-se. Adianto-me a ele e apresso-me para o palco Cupra, ávida por um concerto há muito por mim cobiçado, inconsciente da magnitude que ali se aprontava. Denso e eletrizante, King Krule toma o palco e a noite que sobre nós cai. Num concerto quase tão único como o próprio artista – incapaz (e, francamente, pouco interessado) em se fechar em definições, que incorpora a miscelânea do artista moderno, em constante devir e exploração – Archy Marshall pinta o anoitecer do azul do sonho. E fá-lo literalmente. Após a caligem dos temas de Man Alive (2020) e The OOZ (2017), álbuns que o consolidaram como um artista verdadeiramente transcendente, deleita os fãs com Baby Blue, um já clássico no seu reportório.

Bastante confiante de que havia já alcançado apogeu da noite, retorno ao palco NOS para ser (adivinhe-se lá), deliciosamente surpreendida por Beck. O interregno de quase 15 anos nas visitas a Portugal parece ter surtido efeito – o californiano regressa jovial e irrefreável, num concerto em que deambula livremente pelos seus êxitos. De Loser (1994) a Where It’s At (1996) ou até  de New Polution (1996) a Mixed Business (1999), avolumaram-se os clássicos do artista, que restitui a vitalidade.

Beck – NOS Primavera Sound 2022 © Hugo Lima

Volto a voar para o palco Cupra, desta vez para dar bom uso aos meus bons pés ligeiros. Sem inquietação alguma no horizonte, Arnaldo Antunes brinda os seus lestos ouvintes com a paz e a acalmia que o caraterizam e põe fim ao único desassossego desta já longa noite – o despeito pela ausência de um pé de dança. Assim, a multidão dançou e voou ao som de temas como Grão de Amor ou, até, Velha Infância, do seu grupo, Tribalistas.

A (minha) noite finda agora no Palco NOS. E, confesso, não visiono melhor forma de a findar. Após longa hibernação, revisitam-nos Pavement, com os seus exultantes temas, do seu exultante rock alternativo dos anos 90. Num concerto em que reinam clássicos intemporais, Stephen Malkuns e os seus conterrâneos demonstram que o tempo apenas lhes acrescentou um ou outro cabelo branco. Permaneceu a grandiosidade.

O pé sai já mais débil depois de tamanhas emoções, mas mantendo a mesma ligeireza com que abriu o festival. Retorna amanhã, para fechar em beleza mais uma edição do NOS Primavera Sound.

 

Mariana M. Martins

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