Opinião: Soul – quem vê caras, não vê almas

Finalmente damos por encerrado 2020, um ano marcado por acontecimentos um tanto negativos, no qual se destaca obviamente uma pandemia que nos tirou parte da liberdade a que estávamos habituados e 2021 toma lugar com a ilusória promessa de melhoria! Vamos no dia 5 e tal como a pandemia não desapareceu miraculosamente, os problemas de diferença social e racismo levantados em 2020 não se tornaram invisíveis. Nem nos Estados Unidos, nem em Portugal, nem em qualquer lugar do Planeta Terra.

A questão do racismo e do estatuto e direito social que este afeta fez-se lembrar em diversos planos: na política, no desporto, e agora curiosamente, no grande ecrã, para os mais pequenos. Portugal e a indústria das dobragens está agora a ser o centro das atenções, pelas piores razões.

Soul: Uma Aventura com Alma é a nova obra de arte cinematográfica da Pixar, conhecida pelos filmes Monstros e CªToy StoryÀ Procura de Nemo. Assim sendo, nos meus 23 anos não consigo evitar uma certa nostalgia por qualquer filme produzido por eles.

Particularmente, gostei muito de Soul. Vi-o na versão original, com o cantor e ator Jamie Foxx a dar a voz a Joe, um professor de música e pianista de Jazz que é confrontado com uma aventura pós-morte, e que se tenta redimir ao motivar uma nova alma cética em relação ao seu futuro na Terra. O elenco é completo pela família de Joe e pela comunidade Nova Iorquina onde habita. Particular destaque para a fantástica Angela Bassett, que dá voz à cantora de Jazz Dorothea Williams.

Até aqui tudo bem, até porque o filme é espantoso e muito original, com direito a críticas positivas. Entra então a versão portuguesa.

De facto, os atores portugueses que protagonizam as vozes de Soul são maioritariamente caucasianos, enquanto a maioria das personagens a que estes dão voz são obviamente afro-americanos. E apesar de Jorge Mourato ser muito bom como o Joe português, não seria importante dar ao primeiro protagonista negro da Pixar uma voz também de um afro-descendente?

Na minha opinião, sim. Não só pela questão pioneira que a produtora americana decidiu com esta longa-metragem, mas também porque a representação vocal é muito importante numa indústria de animação com cada vez mais qualidade e proximidade do realismo. E, embora seja um filme de animação, penso que não é uma representação ideal. Se o som é tão importante como o visual na animação, o que aconteceu é um pouco como colocar blackface num artista branco para representar um negro, o que é obviamente catastrófico.

Portanto dou valor aos vários artistas que se manifestaram, e que deram protagonismo à petição que pede uma nova dobragem ao filme da Pixar, e embora não acredite que isso seja provável, ainda me resta um pouco de esperança que aconteça, pelo bem da indústria dos artistas.

Mas tal condenação não surge sem criticismo. Nem que fosse os conhecidos “filósofos” das redes sociais. Rapidamente se manifestaram ao dizer que filmes de animação como o original Mulan, passado na antiga dinastia Wei, não teve dobragem de artistas de descendência chinesa, com o mesmo a passar-se com filmes protagonizados por personagens de outras etnias como Alladin. Alguns ficaram particularmente danados com o facto de não falarem com um ogre verdadeiro para dar a voz a Shrek ou A Pequena Sereia não representar verdadeiramente a comunidade das sereias. Vá, brincadeiras à parte, qualquer uma destas ideias é refutada por não podermos basear a ignorância do passado para escrever o futuro, e na realidade atual é necessário haver um pouco de consciência neste casos. É óbvio que os atores não têm culpa nenhuma no que se passou, e que realmente tenha sido algo despropositado por parte da Disney, que já se manifestou.

Posto isto, Soul fica marcado em Portugal como um filme que não foi devidamente respeitado. Talvez por ser animação e para os miúdos, ou talvez por algo mais. Mas cabe a cada um de nós, como artistas, escritores e principalmente como seres humanos, dar relevância a tais situações, e corrigir atitudes para que não falhem em acontecimentos futuros. Além disso, este filme tem muito mais que se lhe diga, e não é só progressivo no que toca ao protagonista, mas sim também em relação ao enredo principal, que ironicamente alerta para o propósito das pessoas durante a sua vida. Talvez a Pixar tenha tido mais alguma atenção com isto tudo.

 

João Albuquerque

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