Desassociados da realidade: as doenças mentais e a pandemia

Somos seres totalmente dependentes uns dos outros. E isso torna-se cada vez mais uma realidade, a partir do momento que nos privam de interagir com outras pessoas, nos privam de sair de casa e de fazermos tudo aquilo a que o ser humano está habituado a fazer. Parece que temos um limite na pele que nos separa, e que diariamente se vai alimentando das nossas energias e da nossa motivação perante um propósito que se vislumbra no futuro. Mas o que é que se está a passar nas nossas cabeças, na nossa forma de pensar e de agir em sociedade?

 

Tivemos que nos afastar fisicamente para poder sobreviver e isso trouxe consequências graves. Todos nós conhecemos alguém que não está a digerir muito bem o novo estado epidémico. A economia estagnou e a nossa maneira de viver foi balizada. Já não existem os beijinhos, os abraços, nem sequer uma aproximação. Temos todos medo de uma doença, que em boa medida pode ser menos perigosa do que as vozes que surgem nas nossas cabeças.

A ideia, ou a falsa ideia, de que não temos controlo do futuro e por isso vivemos cada dia sem saber como será o seguinte, pode ser avassaladora em muitos casos. Não falando daqueles em que se perde o emprego e a procura por outro é, fundamentalmente, difícil. As difíceis horas em que não se sabe como continuar para ter dinheiro para alimentar os filhos e todas as contas associadas à vivência de uma casa, trazem na algibeira o desespero. E face ao desespero de não ter controlo sobre a sobrevivência podem resultar os piores cenários. Sendo uma realidade transversal a muitas pessoas, torna-se quase invisível, e apesar de muito perigosa, é na maioria dos casos encoberta.

Para entendermos melhor o que levou a alcançar esta realidade, os fatores que mais pesam na balança no que diz respeito às doenças mentais e que tipo de ferramentas estão à nossa disposição para contornar este flagelo, falamos com a Psicóloga Mafalda Machado, que nos deu uma visão mais aprofundada e realista sobre as doenças e crises mentais que surgem devido à pandemia.

 

E.R. Até que ponto é que a nossa saúde mental está dependente das nossas interações sociais, da nossa convivência com o outro, da comunicação e da partilha de experiências?

M.M. O nosso bem-estar e a nossa saúde mental dependem de vários fatores. As interações sociais, a convivência e a capacidade de nos relacionarmos com os outros são essenciais. Dão-nos uma sensação de pertença, e muitas vezes, de segurança – o que é fundamental. O suporte emocional que as interações sociais nos trazem poderá, certamente, ser um fator que nos ajuda a lidar com situações de maior stress.
Eu diria que, com toda a situação de pandemia e consequentes restrições, tem-me sido cada vez mais claro que o tempo que passamos com as nossas pessoas – com a nossa família e amigos – são verdadeiros balões de oxigénio.

E.R. Que tipos de doenças mentais estão mais associadas ao Corona vírus?

M.M. É um facto que a COVID-19 e toda a situação de crise decorrente da mesma têm vindo a afetar a saúde mental da população. Chegam-me, cada vez com mais frequência, pedidos de consulta com queixas de ansiedade, ataques de pânico, quadros depressivos e aumento de sintomas obsessivo-compulsivos. Ainda que muitas destas pessoas já tivessem alguma predisposição, ou até mesmo já sintomatologia presente antes da situação de pandemia, é certo que o medo e a incerteza trazidas por esta nova realidade agravaram este tipo de queixas. A investigação crescente nesta área confirma estas questões, indicando a depressão, stress, variabilidade de humor, ansiedade e até mesmo sintomas associados a quadros de stress pós-traumático, como principais sintomas e respostas à pandemia, em particular por quem passou pela situação de quarentena.

E.R. Até que ponto é alarmante os casos de crises mentais na pandemia? Que consequências poderá ter?

M.M. As doenças, em particular as doenças mentais, são resultado de vários fatores por isso falar de uma só causa seria algo simplista. No entanto, numa altura em que as restrições são necessárias e inevitáveis, convém ter em conta os efeitos negativos do confinamento na saúde mental, existindo cada vez mais investigação que demonstra isso mesmo.
Com a situação pandémica tem existido, de facto, um aumento da procura de ajuda especializada ao nível da saúde mental, pelo que é fundamental o reforço dos serviços de apoio psicológico, bem como o desenvolvimento de serviços e plataformas de intervenção digital.

E.R. Qual é o grupo etário mais afetado pelas doenças mentais na pandemia?

M.M. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o medo e preocupação excessivos apresentam-se mais marcados na população de faixas etárias mais elevadas, nos cuidadores e população com doenças diagnosticadas. Há também estudos que sugerem que este tipo de situações pode ter um grande impacto psicológico nos alunos universitários traduzindo-se num aumento de sintomatologia ansiosa.

E.R. Existe alguma forma de prevenir o aparecimento de doenças mentais?

M.M. Existem vários fatores que podem ser protetores da saúde mental. Em traços gerais, questões como alimentação equilibrada, prática de exercício físico e uma rotina de sono saudável são alguns dos aspetos que não devemos descurar no nosso dia-a-dia. Falando concretamente da pandemia, identificámos num estudo realizado na Escola de Medicina da Universidade do Minho, como fatores protetores: a frequência da prática de exercício físico, o facto das pessoas se manterem a trabalhar, a ausência de doença física ou mental prévia e um menor consumo de informação relacionada com a COVID-19.

E.R. Quem está a passar um período crítico de isolamento o que poderá fazer?

M.M. O isolamento traz, frequentemente, um comportamento mais sedentário e um menor nível de atividade física o que se poderá traduzir num impacto negativo para a saúde, bem-estar e qualidade de vida. Também se poderão verificar alterações nos padrões de sono e de alimentação. Uma situação de isolamento é, por isso, uma situação desafiante do ponto de vista emocional e que poderá causar níveis elevados de stress, ansiedade e/ou humor deprimido.
Nesta situação o auto-cuidado ganha uma importância ainda maior. Quando falamos em auto-cuidado, falamos essencialmente em adotar comportamentos e estratégias que nos facilitem o bem-estar, como por exemplo: ter uma rotina de sono minimamente definida e saudável; tirar algum tempo (dentro daquilo que for possível a cada um) para dedicar a tarefas ou atividades que façam a pessoa sentir-se bem; praticar algum tipo de atividade física, e praticar estratégias de relaxamento para gerir de forma mais eficaz stress e situações que sejam fonte de ansiedade.

E.R. Que ferramentas o governo disponibiliza para contornar as crises e doenças mentais na pandemia?

M.M. Neste momento, o SNS24 tem disponível a linha de aconselhamento psicológico (disponível 24 horas/dia) – um serviço realizado por psicólogos e que pretende, essencialmente, ajudar as pessoas a lidarem com situações de stress ou crise. No caso de eventual necessidade, as pessoas poderão ser encaminhadas para outras entidades de apoio.

E.R. Que conselhos pode dar aos leitores que estejam interessados em ajudar um familiar com depressão?

M.M. A depressão, como muitas outras doenças, poderá ter impacto no funcionamento e dinâmica familiar. Começar por saber reconhecer os sintomas depressivos é um primeiro passo importante. Sintomas como choro fácil; falta de interesse e motivação para questões e atividades do dia-a-dia; alterações dos padrões de sono (tanto podemos estar a falar de insónias como de sono excessivo) e irritabilidade e visão negativa de tudo o que rodeia a pessoa, serão sinais a que devemos estar atentos, principalmente se forem prolongados no tempo.
Muitas vezes, os familiares acabam por ter abordagens que, apesar da intenção ser certamente a mais positiva, poderão não ser interpretadas da melhor forma. Verbalizar algumas questões do tipo “não vale a pena estares assim”, “isso são coisas da tua cabeça”, “se tiveres força de vontade isso passa” poderão acabar por invalidar a pessoa. Em vez disso, poderão perguntar ao familiar do que precisa naquele momento, demonstrar disponibilidade e explicar-lhe que não está sozinho, assim como referir a possibilidade e importância de procurar ajuda especializada.

E.R. Qual é o verdadeiro fator que leva ao desenvolvimento de doenças mentais na pandemia?

M.M. Não podemos afirmar que exista um fator único que seja precipitante para o desenvolvimento de doenças mentais, mesmo numa situação de pandemia. É claro que, com a pandemia, há um conjunto de fatores que poderá ter um maior impacto na nossa saúde mental. Todo o clima de medo e incerteza, o isolamento social que se prolonga há já vários meses, as restrições que nos vão sendo colocadas e que limitam, muitas vezes, as nossas rotinas – tudo isto poderá promover um maior desgaste emocional, e consequentemente, respostas menos adaptativas a toda esta situação.

 

A Engenharia Rádio deixa-te uma mensagem final de incentivo e de coragem. Não tenhas medo de procurar e de confiar nos profissionais de saúde adequados em tempos de necessidades. Relembramos que a própria Universidade do Porto dispõem do serviço de consultas de psicologia e estão disponíveis para tudo o que precisares.

 

Joana Rodrigues Silva

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